10 de abr. de 2016

Desigualdade e educação

Publicado no Correio da Cidadania em 9/abril/2016
Uma das características mais marcantes e perversas do Brasil é a desigualdade na distribuição de renda. A expressão “mais marcante” se justifica, pois estamos entre os dez ou quinze países mais desiguais de todo o mundo, posição essa que é marca indelével do Brasil em inúmeras referências internacionais. A expressão “mais perversa”, por sua vez, é justificada porque nossa desigualdade é responsável, nos grupos mais pobres, por níveis elevadíssimos de carência, abandono e exclusão e, no outro extremo das rendas elevadíssimas, pelos níveis de desperdício, na forma de excesso de bens com pouco (ou nenhum) uso e consumo desenfreado de produtos supérfluos e de luxo. Esse desperdício corresponde não apenas aos bens materiais, mas, também, ao trabalho humano neles embutido e que teriam, bens e trabalho, consequências muito mais positivas se fossem usados para suprir carências e necessidades dos segmentos menos favorecidos.



A desigualdade na distribuição de renda leva à desigualdade no acesso a outros bens, como moradia, água de boa qualidade, vestimentas, alimentação, saúde e, também, como não poderia deixar de ser, educação, em especial pelo caráter mercantil que esta assume no Brasil. Essas desigualdades ocorrem, obviamente, não apenas em termos quantitativos, mas também qualitativos. Assim, crianças e jovens dos segmentos mais desfavorecidos frequentam a escola por pouco tempo e escolas muito precárias.
Além disso, a desigualdade na distribuição de renda e patrimônio leva à concentração de poder nas mãos dos pequenos grupos da elite. Dessa forma, a estrutura política do país, estabelecida ou imposta por essa elite que detém o poder, a um mesmo tempo “legitima” as desigualdades atuais e cria condições para sua reprodução no futuro. Entre essas condições está o sistema educacional, muito desigual hoje para viabilizar a manutenção da desigualdade futura e os privilégios das elites, usando o argumento do despreparo dos jovens pobres para enfrentar o mundo do trabalho, discurso esse que  “legitima” as baixas remunerações que recebem e receberão.
Como medir a distribuição de renda
Há várias formas de se caracterizar ou quantificar a distribuição de renda, como, por exemplo: a fração do produto interno bruto (PIB) apropriada por determinado percentual dos mais ricos; quantas vezes os mais ricos ganham (e gastam) a mais do que os mais pobres; ou índices como o de Gini, talvez o mais conhecido deles. Tais indicadores da desigualdade podem usar como referência a renda pessoal, a renda total por domicílio, a renda per capita domiciliar, entre algumas outras. Além dessas diferenças, as várias agências nacionais ou internacionais que divulgam os indicadores de desigualdade podem adotar diferentes critérios que dão origem a pequenas variações entre um mesmo indicador.

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A multiplicidade de indicadores de desigualdade (quão ricos/pobres são os ricos/pobres de um país, índices como o de Gini, quantas vezes maior é a renda dos mais ricos do que a renda dos mais pobres etc.), as várias unidades de renda tomadas como referência (domicílios, domiciliar por pessoa, por trabalhador etc.) e as formas de estimá-los e divulgá-los não quer dizer que nenhum deles é suficientemente bom e, por isso, precisamos usar vários; ao contrário, todos são suficientemente bons.
Se muitos indicadores são comumente usados é porque alguns deles têm propriedades técnicas melhores para algumas finalidades (como os índices de Gini e de Theil), alguns são mais facilmente compreendidos ou outros caracterizam mais claramente algum aspecto para o qual se quer chamar a atenção (como a excessiva pobreza ou a excessiva riqueza).
Tabela 1 – Informações quanto à concentração de renda no Brasil e nos países onde ela é melhor e pior distribuída
Indicados e agência
Posição do Brasil
Cinco países menos desiguais
Cinco países mais desiguais
Quantas vezes os 20% mais ricos ganham do que os 20% mais pobres, ONU (1)
Décimo pior
Bósnia‑Herzegovina, Hungria, Japão, Países Baixos, República Checa
Bolívia, Lesoto, Namíbia, Rep. Centro Africana, Serra Leoa
Quantas vezes os 10% mais ricos ganham do que os 10% mais pobres, CIA (2)
Décimo primeiro pior
Bósnia‑Herzegovina, Finlândia, Hungria, Japão, República Checa
Bolívia, Guiné-Bissau, Namíbia, Rep. Centro Africana, Serra Leoa
Índice de Gini, Banco Mundial (3)
Décimo segundo pior
Bielorrússia, Eslovênia, Noruega, República Checa, Ucrânia
África do Sul, Botsuana, Haiti, Namíbia, Rep. Centro Africana

Como todos os indicadores são suficientemente bons, se um indicador divulgado por um organismo sugere que tal país tem uma boa ou má distribuição de renda, outro indicador estimado por outra instituição diferente e seguindo outro critério indicará a mesma coisa. Para ilustrar esse fato, a tabela 1 mostra a posição do Brasil segundo três diferentes indicadores divulgados por três diferentes organizações bem como os cinco países com menores e maiores desigualdades (incluindo apenas países com mais do que um milhão de habitantes). Em qualquer caso, a posição ocupada pelo Brasil é praticamente a mesma, próxima da décima pior posição, e os países mais e menos e mais desiguais são, também, praticamente os mesmos. Portanto, qualquer que seja o indicador de distribuição de renda, as conclusões qualitativas que podemos obter são equivalentes.

A renda dos mais ricos e dos mais pobres
Um dos indicadores possíveis de concentração de renda é a relação entre as rendas dos mais ricos e a dos mais pobres. A tabela 2 mostra essas relações para alguns grupos de renda no Brasil e em países com boa distribuição de renda. A relação entre a renda domiciliar per capita dos 20% mais ricos e a dos 20% mais pobres no Brasil era, em 2015, da ordem de 16 vezes. Ou seja, o que um representante médio do segundo grupo ganha e gasta em um ano, um representante médio dos 20% mais ricos ganha e gasta em pouco mais do que três semanas.
Quando examinamos grupos mais extremos, por exemplo, os 10% mais ricos e os 10% mais pobres, aquela relação, evidentemente, aumenta. Assim, os gastos médios de um representante do grupo dos 10% mais ricos é perto de 40 vezes maior do que a dos 10% mais pobres: o que um representante do primeiro grupo gasta em pouco mais do que uma semana equivale aos gastos de um ano inteiro de um representante do segundo grupo.
Tabela 2 – Quantas vezes os grupos dos mais ricos gastam a mais do que os grupos mais pobres.
Grupos mais ricos e mais pobres
Brasil (4)
Valores típicos nos países mais igualitários (5)
20%+/20%-
16
4
10%+/10%-
36
5
5%+/5%-
110
- -
A relação de renda 5%+/5%- foi estimada com base na distribuição de renda no Brasil em todos os segmentos (6).

Embora quando examinamos os extremos mais baixos e mais altos de renda, a comparação apenas monetária pode não ser adequada, pois boa parte dos produtos aos quais os muito pobres têm acesso pode não ter origem monetária. Apesar dessa limitação, vale observar que o grupo formado pelos 5% mais ricos tem renda monetária média superior a cem vezes a renda média do grupo formado pelos 5% mais pobres. Para comparação, essa relação era, no Canadá, de 39 vezes (7).

Variação da renda no Brasil
Se não tivermos algum padrão de comparação, analisar apenas a distribuição de renda, por si só, pode ser insuficiente para viabilizar uma conclusão qualitativa. Um padrão de comparação adequado pode ser examinar a realidade de outros países, como já foi feito. Outro padrão é verificar como a desigualdade variou ao longo do tempo. Por isso, a figura 1 mostra como a relação entre a renda dos 20% mais ricos para a renda dos 20% mais pobres variou a partir de 1976, próxima à faixa entre 25 a 30 ao longo das décadas de 1980 e 1990 para um valor próximo a 15 em 2014.


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Figura 1 - Desigualdade de renda. Quantas vezes a renda domiciliar per capita média dos 20% mais ricos é maior do que a mesma renda dos 20% mais pobres, período 1976 a 2014. Fonte: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, Ipeadata.
É interessante observar que uma pequena transferência de renda dos segmentos mais ricos para os mais pobres poderia colocar o Brasil em um patamar bem diferente do atual. Por exemplo, caso o grupo formado pelos 20% mais ricos tivesse sua participação na renda nacional reduzida em cerca de 25% e esta fosse transferida para os grupos formados pelos mais pobres, o Brasil sairia da posição de uma das piores concentrações de renda para uma posição próxima daquela dos países mais igualitários (8).
Como essa transferência poderia ser feita é mostrada na Figura 2, na qual a distribuição de renda domiciliar brasileira de cinco quintos da população ordenados, da esquerda para a direita, dos grupos mais pobres para os mais ricos é comparada com a distribuição de renda dos países com as menores desigualdades: a redução da renda dos 20% mais bem aquinhoados em 25% permitiria o aumento da renda dos demais grupos segundo os percentuais indicados.
Dito dessa forma, poderia parecer relativamente fácil mudar nossa realidade; afinal, reduzir em 25% a renda dos mais ricos não parece muito difícil nem, parece também, comprometer a qualidade de vida. Entretanto, isso não é verdade, pois são exatamente os membros dos grupos mais favorecidos que ocupam a totalidade das funções com poder de decisão e cuja “opinião pública” conta. 
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Figura 2 – Renda domiciliar (%), participação por quintil, indo do grupo formado pelos 20% mais pobres, mais à esquerda, ao grupo formado pelos 20% mais ricos, mais à direita. Barras cinzentas: situação típica de países com boas distribuições de renda. Barras pretas: Brasil. Os valores indicam as variações necessárias para que o Brasil atingisse um padrão razoável de distribuição de renda.

Evolução no tempo
A concentração de renda no Brasil começou a intensificar-se durante o período militar; durante a crise econômica que se seguiu a esse período, na ausência de movimentos sociais com força suficiente para conquistar ou pelo menos preservar direitos sociais, a renda continuou a se concentrar. Aparentemente, entre 1960 e 1990, parece ter ocorrido o seguinte  (9): durante o período em que houve crescimento da renda per capita, este crescimento foi muito mais intenso nos segmentos mais favorecidos, enquanto os segmentos mais pobres tiveram crescimento de renda menores do que a média nacional (ou seja, receberam as migalhas), o que contribuiu para aumentar a relação entre as rendas dos mais ricos e a dos mais pobres; durante o longo período de recessão que seguiu à falência do projeto econômico do período ditatorial, a renda dos mais desfavorecidos foi reduzida mais intensamente do que a renda dos mais favorecidos e as migalhas foram confiscadas.
Por causa desses fatos, no final da década de 1980, o Brasil chegou a ter a pior distribuição de renda entre todos os países do mundo para os quais havia dados disponíveis. Por volta de 1990, os 10% mais ricos tinham uma renda média por pessoa cerca de 75 vezes superior àquela dos 10% mais pobres.

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Figura 3 – Quantas vezes um representante médio dos 10% mais ricos recebe a mais do que um representante médio dos 10% mais pobres. Fontes: IPEADATA, sítio citado, e Ricardo Paes de Barros et al., Geração e Reprodução da Desigualdade de Renda no Brasil. In: Perspectivas da economia brasileira 1994. Rio de Janeiro: IPEA, v. 2, p. 471-490, citado em Estatísticas do século XX, IBGE, 2006. Sítio http://seculoxx.ibge.gov.br/images/seculoxx/seculoxx.pdf, acessado em março de 2016

Desigualdade de renda e desigualdade educacional
Uma das consequências sociais da concentração de renda se manifesta na educação recebida por uma pessoa. No Brasil, na ausência de um sistema educacional igualitário, público e de boa qualidade, especialmente na educação básica, a educação formal recebida por uma criança ou um jovem é quase totalmente dependente de sua condição econômica e social. Assim, entre os 20% mais pobres, a conclusão do ensino fundamental é rara exceção e a regra é deixar o sistema educacional antes dos 8 ou 9 anos obrigatórios. No grupo formado pelos 20% mais ricos, a conclusão do ensino superior é a regra e apenas entre os 10% mais ricos um jovem tem chance significativa de concluir um curso superior de boa qualidade.
A conclusão que decorre é óbvia. Como a renda de uma pessoa depende fortemente de seu preparo escolar e educacional, na medida em que nosso sistema educacional é, hoje, muito desigual, ele acaba por contribuir para reproduzir, no futuro, a atual desigualdade na distribuição de renda, formando um círculo vicioso muito perverso.
Se quisermos que as próximas gerações vivam em um país menos desigual, precisamos, hoje, de políticas de impostos (sobre heranças, patrimônio, renda e consumo de bens supérfluos e de luxo), políticas relativas às propriedades, tanto urbanas como rurais, políticas de investimentos no setor produtivo que respondam às necessidades regionais e locais, políticas de transferência direta de renda, entre diversas outras. Mas precisamos, também, construir um sistema educacional igualitário, democrático no acesso e na permanência, que considere as necessidades, as possibilidades e as vocações das diferentes regiões e que vise a formação dos profissionais necessários para promover o desenvolvimento social e o crescimento econômico do país.
Notas:

1) Human development Report, 2007/2008, acessado em março/2016
2) (2) The world Factbook, CIA, https://www.cia.gov/library/publications/the-world-factbook/fields/2047.html, site consultado em março/2016
3) Banco Mundial, http://data.worldbank.org/indicator/SI.POV.GINI/
4) IPEADATA, site consultado em março/2016
5) ONU: Human Development Report 2007/2008 
6) Fitting Lorenz Curves, O. Helene, Econ. Lett. 108 (2010), p. 153),
7) Canada’s Rich and Poor Moving in Opposite Directions, David A. Green and Kevin Milligan, Canadian Centre for Policy Alternatives, 2007
8) É necessário observar que uma redução na participação na renda nacional não significa, necessariamente, redução de renda ou de poder aquisitivo. Por exemplo, entre 2004 e 2009, segundo informações disponíveis no sítio do IPEADATA, os 20% mais ricos tiveram sua participação na renda nacional (medida em termos de renda domiciliar per capita) reduzida de 61,3% para 58,7%; entretanto, a renda média deflacionada aumentou em 22%. No mesmo período, os 20% mais pobres tiveram sua participação aumentada de 2,8% para 3,1%, correspondendo a um aumento do poder aquisitivo de 44%. 
9) A Pior Distribuição de Renda do  Mundo, Otaviano Helene, Folha de S. Paulo em 22/12/1990.

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