11 de jan. de 2011

O caso do Enem (Ou acaso do Enem?)

Caros Amigos, versão online (http://carosamigos.terra.com.br/) 10/01/2011
(Há uma versão resumida publicada na edição em papel de janeiro/2011 de Caros Amigos)


O Exame Nacional de Ensino Médio (Enem) surgiu no final da década de 1990, com finalidades e características bastante parecidas com as dos exames equivalentes existentes em diversos países. Por suas principais características, como o fato de não ser obrigatório, poder ser feito várias vezes, ser usado ou não por instituições de ensino superior como instrumento de seleção de estudantes e ser aplicado por um órgão independente do sistema escolar e da gestão das instituições de ensino superior, o Enem se parece mais com os exames feitos nos Estados Unidos do que com os europeus, usualmente obrigatórios para que os estudantes possam ingressar em cursos superiores.


É importante observar que, diferentemente do que ocorreu em outros países, a introdução de um exame de final de ensino médio não surgiu como uma solução para eventuais problemas educacionais que o país enfrentava e os estudantes, educadores e administradores apontavam e esperavam que fossem resolvidos. Ao contrário, desde seu início o Enem tornou-se uma solução em busca de um problema.

Entre os argumentos que justificavam a introdução de tal exame, em especial no seu início, estava a expectativa (Ou o engano? Ou a ilusão?) de que o Enem, ao avaliar as “habilidades e competências e não apenas a capacidade de reproduzir conteúdos”, daria maiores chances para os estudantes desfavorecidos por condições materiais e/ou por não terem tido acesso ao conteúdo pleno das disciplinas do ensino médio. Além disso, ele seria tecnicamente sofisticado, pois se basearia na teoria de resposta ao item. Entretanto e infelizmente, essa expectativa não tem correspondido à realidade. Qualquer que seja o tipo de exame que leve à classificação de estudantes (seja de múltipla escolha ou dissertativo, seja baseado em habilidades e competências ou em conteúdos curriculares ortodoxos ou considere uma reles média final ou um parâmetro de desempenho ajustado por métodos estatísticos sofisticados), desde que suficientemente bem feito, o resultado é basicamente o mesmo. Se a ordem dos classificados por um procedimento de avaliação não é exatamente igual à de outro procedimento, havendo um pequeno embaralhamento, isso é irrelevante para qualquer finalidade prática, não existindo nenhum critério objetivo que permita afirmar que uma sequência apresentada seja melhor que outra. E no topo da lista sempre estarão os estudantes que freqüentaram boas escolas e provenientes das camadas mais favorecidas da população. Enfim, para esse grave problema da segregação social e econômica do nosso sistema escolar, o Enem não se tornou uma solução.

Inicialmente, o resultado do Enem foi usado como um processo seletivo apenas por instituições privadas, em especial aquelas que na prática não tinham nenhuma disputa qualificada por suas vagas (menos candidatos do que vagas). Ao adotarem o Enem como um critério de seleção, as instituições privadas de baixa procura têm vários ganhos. Entre eles, essas instituições recebem uma espécie de aval das instituições públicas, no caso o próprio MEC, que é quem indica seus estudantes e passam a atrair estudantes de regiões mais distantes, já que o Enem, desde seu início, é bastante abrangente. Outra vantagem, ainda, é a economia financeira dessas instituições, pois não precisam gastar recursos para fazer seus exames de seleção. Talvez as instituições privadas que oferecem cursos de baixa qualidade e baixa procura, as primeiras a adotarem o resultado do Enem, formem um dos poucos grupos que ganham alguma coisa com ele.

Sistema de seleção unificado

Inicialmente, o Enem era adotado como processo de seleção para cursos de pouca (ou nenhuma) concorrência. Posteriormente, a partir de 2009, o Enem (na sua versão Novo Enem) passou a ser adotado por diversas instituições públicas federais como critério de seleção unificado de estudantes.

Os defensores do Enem como um vestibular unificado e nacional, apontam, entre seus méritos, o fato dos estudantes não precisarem fazer uma via sacra pelas várias instituições de ensino, em especial quando disputam uma vaga em cursos mais concorridos. Como está registrado no verbete Enem na Wikipedia (consultada em 16 de dezembro de 2010),“o MEC argumenta que o vestibular tradicional desfavorece candidatos que não podem se locomover pelo território. Assim, um jovem que queira prestar medicina e tenha problemas financeiros, dificilmente poderá participar de processos seletivos de diferentes faculdades – e terá suas chances de aprovação diminuídas”. Esse tipo de argumento é insuficiente para justificar uma prova nacional da dimensão do Enem. Primeiro, se um estudante não tem condições financeiras de se locomover pelo território, também não terá condições de se manter fora de casa. Segundo, a distância entre o local de moradia e de estudo é uma dificuldade a mais na vida do estudante e um fator associado à evasão escolar em qualquer lugar do Mundo e em qualquer nível escolar. Assim, ao alocar um candidato para um curso concorrido em um lugar distante de sua moradia, não apenas impedirá que alguma pessoa daquela região ocupe aquela vaga como contribuirá para o aumento da evasão. Um terceiro aspecto diz respeito à promoção do desenvolvimento local e regional feita pelas instituições de ensino superior, em especial as públicas, promoção essa que ocorre basicamente pela formação de quadros profissionais locais. Assim, ao “importar” estudantes de outras regiões do país e que, depois de formados, tenderiam a voltar para suas cidades e estados de origem, uma instituição teria o seu papel de promoção do desenvolvimento local muito reduzida. Ainda pior, como a procura qualificada pelos cursos mais concorridos tem como origem as regiões mais ricas do país, esse fato prejudicaria exatamente as regiões mais pobres, um efeito exatamente oposto ao que está explicitado no texto entre aspas citado acima. Se nós queremos aumentar a mobilidade dos estudantes brasileiros, devemos primeiro explicitar esse desejo, avaliando suas vantagens e desvantagens e, depois disso, descobrir as maneiras mais eficientes de fazê‑lo. Assim, o Enem continua a ser uma solução em busca de um problema.

Outro argumento a favor do uso do Enem como o processo seletivo para cursos superiores afirma que ele se opõe ao vestibular tradicional em vários sentidos. Um deles é quanto à tensão típica dos estudantes. Ora, primeiro, o Enem é um vestibular e como tal provocará todas as tensões que os outros vestibulares também provocam. Segundo, se é uma prova única nacional, a possibilidade de fazer vestibulares em algumas instituições é perdida e, portanto, desaparece a chance que pelo menos em um deles a tensão não atrapalhe; assim, a tensão daquela única prova pode ser ainda maior e mais danosa do que a tensão típica dos vestibulares.

É importante ainda observar que há um grande grau de desconfiança em relação ao Enem por parte das instituições que mantém cursos mais concorridos. Essa desconfiança fica patente quando vemos que nesses cursos a nota do Enem ou entra na composição final com um peso muito pequeno em relação à nota do vestibular tradicional, ou é usado como uma espécie de primeira fase. Neste caso, o Enem não só não resolve problema algum, como cria um: embora a ordem de classificação seja a mesma caso a instituição adote ou não o Enem, os estudantes precisam fazê‑lo, pois, do contrário, poderão ser prejudicados na média final ou mesmo excluídos se o Enem for usado como uma pré-seleção.

O Enem e as escolas de ensino médio

No início da implantação do Enem, final da década de 1990, um outro argumento usado a seu favor seria o de que ele, ao explicitar as “habilidades e competências desejadas e ser transdisciplinar e transversal”, seria um balizador para as escolas de ensino médio do país que o usariam como um referencial básico em suas ações educativas. Primeiro, quanto a esse possível fato, há a crítica daqueles que discordam que um padrão unitário de educação seja adequado ao país. Os que entendem dessa forma afirmam que questões regionais são relevantes quando se trata de vários aspectos do ensino. Por exemplo, a Revolução Praieira de Pernambuco, a Revolução de 1932 em São Paulo ou a Revolução Federalista no Rio Grande do Sul, embora fatos nacionais importantes e que devem ser estudados por todos, serão apreendidos de forma diferente nas diferentes regiões do país. Exemplos equivalentes podem ser encontrados em Geografia ou no uso da língua. Mesmo em disciplinas de caráter universal, como a Matemática, palavras ou exemplos usados em problemas e exercícios feitos para avaliar seu aprendizado podem dificultar ou facilitar o entendimento da questão. Isso, sem considerar questões construídas com base em quadrinhos de jornais, tão freqüentes no Enem e cujo entendimento pode depender fortemente da região do país, além do nível econômico do estudante e mesmo do jornal lido (ou não lido) em sua casa. Portanto, esse possível mérito do Enem é, também, um demérito.

Outro argumento referente a essa pretensa característica indutora do Enem é o fato de que as escolas que dispõe de recursos materiais suficientes, bons professores e infra‑estrutura adequada, condições infelizmente restritas a uma parte das escolas privadas e a não mais do que cerca de 2% das públicas (basicamente as federais, algumas poucas escolas estaduais e colégios de aplicação), não precisam dessa indução, pois sabem exatamente o que devem fazer e têm condições para tal. Quanto à enorme maioria das escolas públicas, não é a falta de uma referência clara que as impede de serem melhores, mas, sim, a falta de recursos e as péssimas condições de estudo e trabalho que oferecem. Portanto, para esse tipo de problema o Enem também não é solução.

O Enem, o Prouni e as avaliações

Há duas confusões relativas ao Enem. Uma delas é quanto à relação entre esse exame e o sistema de bolsas Prouni. Como a atribuição de bolsas é feita com base no resultado do Enem, muitas pessoas pensam que o Prouni só existe por causa do Enem e se este desaparecer, o outro também desaparecerá. Não é assim. As bolsas do sistema Prouni (cuja existência, forma e adequação deveriam ser analisadas, pois, como o Enem, criam mais problemas que soluções) são concedidas pelas instituições privadas que queiram se beneficiar de diversas isenções de taxas e impostos. Esse sistema pode existir independentemente do Enem e a seleção de beneficiários poderia ser feita de formas diferentes e até mais adequadas. Como, entretanto, o sistema de bolsas do Prouni obriga os estudantes a fazerem o Enem, um empresta falsa legitimidade ao outro e, ambos, confundem a opinião pública e os estudantes.

Outra confusão é quanto à função avaliadora do Enem. É claro que um exame do qual participam alguns milhões de estudantes de todo o país avalia alguma coisa. Entretanto, avalia mal e de forma absolutamente secundária e desnecessária. O “mal” se refere ao fato que é opcional, podendo ser repetido várias vezes por alguns e não ser feito por outros. Quanto aos outros dois qualificativos é porque existem outros sistemas de avaliação (que fornecem os resultados usados na composição do Ideb) mais rigorosos e precisos. Portanto, a característica de instrumento de avaliação usada para justificar o Enem é falsa.

Conclusão

As gravíssimas falhas surgidas na aplicação do Enem (fraudes, colas, provas erradas, vazamento de temas, provas feitas por “pilotos”, roubo da folha de questões etc) colocam uma questão adicional: é possível, considerando a realidade nacional, fazer uma prova absolutamente confiável para mais do que 3 milhões de estudantes espalhados por mais do que 100 mil salas de aula e mil cidades diferentes sem que ocorram problemas graves e levando a uma classificação dos estudantes absolutamente confiável? Pela experiência e pela postura adotada pelas instituições responsáveis por cursos mais competitivos, nos quais os resultados obtidos pelos estudantes no Enem têm peso insignificante nos processos de seleção, se é que tem algum, parece que não.

Há ainda muitos aspectos que poderiam ser analisados. Entretanto, os citados parecem suficientes para que possamos tomar algumas decisões quanto ao Enem, em especial se deve continuar existindo ou não. Afinal, que problemas ele resolve? Que problemas ele cria? Vale a pena envolver milhões de estudantes para resolver pouquíssimo problemas e criar muitos outros? Certamente, não.

O sistema educacional brasileiro tem problemas muito claros e bem conhecidos, como péssimas condições de trabalho dos professores, falta de atrativo para o exercício do magistério, falta de equipamentos e materiais adequados nas escolas etc. O Enem tem sido usado como a roupa do rei nu, que continua nu, e provoca discussões que acabam por colocar de lado o ataque às verdadeiras questões. Enquanto isso o nosso sistema educacional continua ruim e, em não sendo verdadeiramente melhorado, piorando.

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